Quatro observações conclusivas
Concluirei fazendo quatro observações sobre a minha visão de educação infantil como uma prática democrática – ou de que ela é possível. Em primeiro lugar, estabelecer a democracia como um valor central nas instituições de educação infantil é, de acordo com o meu ponto de vista, incompatível com a consideração dessas instituições como negócio e a adoção de uma abordagem mercadológica para o desenvolvimento do atendimento. Negócios, ou pelo menos aqueles pertencentes a um indivíduo ou empresa, podem, evidentemente, querer ouvir seus “clientes” e levar seus pontos de vista em consideração. Podem até mesmo exercer alguma responsabilidade social. Entretanto, não podem permitir que a prática democrática seja uma prática prioritária porque sua responsabilidade principal é para com seus proprietários ou acionistas; as decisões nos negócios não podem ser tomadas democraticamente. Da mesma forma, um sistema de atendimento às crianças baseado em escolhas feitas por consumidores individuais está fundamentalmente em desacordo com outro sistema que valoriza decisões coletivas tomadas pelos cidadãos. O Power Inquiry (2006) faz essa distinção claramente: “decisões individuais tomadas em benefício próprio e da própria família não podem substituir a deliberação em massa no domínio público, que é um processo absolutamente crucial numa sociedade democrática e aberta” (p. 159).
Em segundo lugar, a democracia é arriscada. Ela pode representar uma ameaça não só para os poderosos, mas também para os que são fracos. As pessoas vêm para o processo democrático não só com diferentes perspectivas, mas também com poderes e interesses diversos; é provável a ocorrência de conflitos em que os mais fracos poderão perder. A desigualdade pode então aumentar ao invés de diminuir. Um argumento contra a descentralização, que o governo inglês pode muito bem utilizar em defesa de uma abordagem altamente centralizada e prescritiva à política, é que uma forte regulamentação central da educação infantil é necessária para garantir a igualdade de tratamento para todas as crianças; sem isso, abrem-se as portas para a desigualdade, arriscando algumas crianças a obterem condições muito piores que as outras – um risco maior para as de origem mais pobre. Há certa verdade nisso: a defesa da menor centralização e de mais prática democrática é mais fraca numa sociedade desigual, onde a educação infantil e sua força de trabalho são menos desenvolvidas e foram alvo historicamente de desinteresse e baixo investimento público.
Não há uma resposta final e definitiva para esse dilema. A tensa relação entre unidade e descentralização, padronização e diversidade é antiga e nunca resolvida em definitivo – é uma eterna dialética, uma relação em fluxo constante e uma questão política sempre contestável. Conforme implícito acima, tudo isso precisa ser decidido em relação às condições atuais, mas também em relação a onde se deseja chegar. Mesmo julgando que a atual situação requer uma forte centralização, pode-se decidir que não é isso que se deseja a longo prazo. Então, a questão é que condições são necessárias para avançar em direção à descentralização e à democracia. Esse processo de movimento da centralização para a descentralização pode ser observado na história da educação infantil na Suécia, que passou de uma abordagem bastante centralizada e padronizada para uma abordagem que atualmente é fortemente descentralizada. Mesmo assim, a relação deve estar sempre sob um escrutínio minucioso. Como a descentralização está funcionando na prática? Quem beneficia e quem perde? Como a prática democrática pode ser mais bem equilibrada no que se refere a um tratamento equitativo?
Minha terceira observação diz respeito à questão do paradigma. Propus, anteriormente, que o reconhecimento de diversos paradigmas é um valor importante para a prática democrática. Mas, atualmente, tal reconhecimento é raro. Em vez disso, o mundo da infância enfrenta uma questão profundamente inquietante, mas, em grande medida, não explicitada: a divisão paradigmática entre a maioria (seja a daqueles que fazem a política, dos profissionais ou dos pesquisadores), que está situada num paradigma positivista ou modernista, e a minoria, que se situa num paradigma diversas vezes descrito como pós-moderno, pós-positivista ou pós-fundacional. A primeira desposa “a visão moderna de verdade como reflexo da natureza... [e acredita] que o conflito de interpretações pode ser mediado ou resolvido de modo a proporcionar uma única teoria coerente que corresponda à forma como as coisas são” (Babich, Bergoffen, & Glynn, 1995, p. 1). Enquanto os últimos adotam “questões pós-modernas de interpretação, avaliação e perspectiva... [e] uma realidade infinitamente interpretável onde interpretações diversas, divergentes complementares, contraditórias e não comparáveis contestam-se mutuamente” (p. 1). Para os primeiros a educação infantil está avançando inexoravelmente para sua apoteose, baseada na crescente capacidade da ciência moderna de fornecer evidências irrefutáveis sobre o que funciona melhor. Enquanto, para os últimos, a educação infantil oferece um prospecto de infinitas possibilidades, informadas por múltiplas perspectivas, conhecimentos locais e verdades provisórias.
Os dois lados têm pouco a ver um com o outro. A comunicação é restrita, dado que os modernistas não reconhecem paradigmas, aceitando sem questionamento seu próprio paradigma e seus respectivos pressupostos e valores. Enquanto os pós-modernistas reconhecem paradigmas, mas dão pouco valor ao paradigma da modernidade ou, pelo menos, optaram por não se situar nele. O primeiro grupo, por conseguinte, não vê uma escolha a fazer; já o outro fez uma escolha que envolve situá-lo além da modernidade. Comunicações emitidas a partir de um campo são rejeitadas pelo outro por serem consideradas inválidas, incompreensíveis, desinteressantes ou fantasiosas.
Essa relação distante e não-comunicativa faz alguma diferença? O papel dos pós-fundacionalistas não é desenvolver discursos alternativos e pensamento crítico, ao invés de confraternizarem-se com aqueles com os quais parecem não ter nada em comum? E não deveriam os modernistas concentrar sua atenção no que acreditam, na produção do verdadeiro conhecimento? Penso que faz diferença. A ausência de diálogo e debate empobrece a primeira infância e enfraquece a política democrática. As políticas e práticas “dominantes” ficam isoladas de uma fonte importante de pensamentos novos e diferentes; aqueles que fazem a política têm pouca ou nenhuma consciência de que há um movimento crescente questionando muito do que eles tomam como certo (ou do que foram aconselhados a tomar como certo). O processo de despolitização já mencionado deixa muito pouco espaço para a crítica de um discurso dominante, o que compromete cada vez mais a democracia. Em vez de tal discurso ser considerado uma perspectiva que privilegia certos interesses, ele vem a ser considerado como a única explicação verdadeira, questionando-se apenas os métodos mais eficazes de implementação. Nessa situação, opções de política e prática são reduzidas a questões técnicas limitadas e emprobrecidas do tipo “o que funciona melhor?” (para uma discussão mais completa sobre essa importante questão, ver Moss, 2007).
Finalmente, gostaria de mencionar mais um nível em que a prática democrática é necessária, além dos contextos nacional, regional, local e institucional: o europeu. A União Europeia tem uma longa história de envolvimento na política e no atendimento à primeira infância, embora tenha tendido a um discurso um tanto restrito sobre “cuidado da criança”, já que seu interesse surgiu, principalmente, dos objetivos políticos do mercado de trabalho (incluindo a igualdade de gênero no emprego). Há dois exemplos recentes desse envolvimento e um terceiro onde a educação infantil deveria aparecer, mas não aparece.
Em 2002, em uma reunião em Barcelona, os governos da União Europeia concordaram que “os estados-membros [devem empenhar-se para] até 2010 oferecer atendimento a pelo menos 90 % das crianças entre 3 anos e a idade da escolaridade obrigatória e a pelo menos 33% das crianças menores de 3 anos”. Esse objetivo puramente quantitativo nada diz sobre a organização ou o conteúdo desses locais; nenhuma referência é feita, por exemplo, aos critérios acordados 10 anos antes pelos governos dos estados-membros quando adotaram uma Recomendação do Conselho sobre Cuidado de Crianças, que estabelecia uma série de princípios e objetivos para orientar o desenvolvimento qualitativo dos serviços. Ao invés disso, deixa-se para os estados-membros a busca de cumprimento das metas de Barcelona “em conformidade com os padrões [nacionais] de provisão”.
Em abril de 2006, a chamada Bolkestein Directive – ou Diretiva de Serviços, para usar seu nome adequado – foi substancialmente alterada pelo Conselho Europeu e pelo Parlamento Europeu, abandonando o princípio de país de origem e excluindo os setores de serviços sociais e de saúde (inclusive atendimento às crianças). Sem essas modificações, essa proposta de legislação europeia da Comissão Europeia permitiria a provedores privados estabelecer creches em outros países, aplicando os padrões regulamentares do seu próprio país, e dessa forma arriscando um processo de nivelamento pelo denominador comum mais baixo (Szoc, 2006).
Em julho de 2006, a Comissão Europeia produziu a comunicação Towards an EU Strategy on the Rights of the Child, na qual propôs “estabelecer uma ampla estratégia para promover efetivamente e salvaguardar os direitos da criança nas políticas internas e externas da União Europeia”. A boa notícia é que a União Europeia reconheceu sua obrigação de respeitar os direitos das crianças. A má notícia é que a comunicação pouco se compromete e nada diz sobre os direitos da criança nas políticas de “cuidado das crianças” da União Europeia, tais como as metas de Barcelona mencionadas anteriormente, políticas que até agora foram motivadas principalmente por objetivos políticos preocupados com emprego e igualdade de gênero.
Com algumas honrosas exceções, a comunidade da primeira infância na Europa falhou em se envolver com essas e outras iniciativas; não criamos nenhuma política europeia para a primeira infância, não criamos um “espaço democrático” para a discussão de iniciativas políticas provenientes da União Europeia e para a criação de demandas por novas iniciativas. Não me parece possível, tampouco eu gostaria de ver, uma abordagem europeia uniforme em todos os aspectos da política, provisão e prática da primeira infância. Não penso que seja possível nem desejável uma abordagem europeia uniforme a todos os aspectos da política, provisão e práticas relativas à primeira infância. Mas, a meu ver, é possível e desejável trabalhar, democraticamente, para identificar um conjunto de valores, princípios e objetivos consensuais para o atendimento da infância: em suma, desenvolver uma abordagem ou política europeia de educação infantil. Em apoio a essa proposição, remeto ao Quality Targets in Services for Young Children, um relatório elaborado por um grupo de trabalho constituído por 12 estados membros através de um processo democrático de consulta, discussão e negociação (E. C. Childcare Network, 1996). Quality Targets define 40 metas comuns a serem atingidas por toda a Europa em um período de 10 anos, para implementar os princípios e objetivos acordados pelos governos de estados-membros na recomendação do 1992 Council Recommendation on Childcare. Revendo recentemente esse documento, fiquei impressionado ao constatar como ele resistiu à passagem do tempo, e também como mostra o potencial da prática democrática para a definição de um referencial europeu para a educação infantil.
Durante o ano de 2007, Children in Europe – uma revista singular, multinacional e multilíngue – propõe-se a estimular o debate democrático dentro dos países membros da União Europeia sobre se devemos e podemos trabalhar na definição de uma abordagem europeia ao atendimento para crianças. A intenção é apresentar, para discussão e contestação, uma declaração propondo certos valores e princípios compartilhados. Children in Europe não estará começando do zero, mas construindo sobre fundações europeias já existentes, como o 1992 Council Recommendation on Childcare e o Quality Targets, assim como os inestimáveis relatórios da OECD Starting Strong (Organization for Economic Cooperation and Development, 2001, 2006). Espero que muitos outros participem do espaço democrático que a Children in Europe espera inaugurar, trazendo não só a política europeia para a creche, mas também a creche para a política europeia.
Referências
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Peter Moss, Pesquisador do Thomas Coram Research Unit e Professor da área de Provisão da Primeira Infância, do Institute of Education, University of London, Reino Unido. Endereço para correspondência: Thomas Coram Research Unit, Institute of Education, University of London, 27/28 Woburn Square. London WC1H 0AA, Room 33. Endereço eletrônico: peter.moss@ioe.ac.uk
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