IDENTIDADES PROFISSIONAIS DE EDUCADORAS DE INFÂNCIA A INTERVIR EM CRECHE: DAS IDENTIDADES HERDADAS ÀS IDENTIDADES DESEJADAS


IDENTIDADES PROFISSIONAIS DE EDUCADORAS DE INFÂNCIA A INTERVIR EM CRECHE: DAS IDENTIDADES
HERDADAS ÀS IDENTIDADES DESEJADAS

Isabel Maria Tomázio CORREIA

Escola Superior de Educação, Instituto Politécnico de Setúbal
isabel.correia@ese.ips.pt

Resumo: A presente comunicação apresenta parte dos resultados de uma investigação onde foi problematizado a construção das identidades profissionais das educadoras de infância a intervir no contexto de creche. Procuramos desocultar os sentidos e significados da intervenção educativa de seis educadoras a desempenhar funções em três estabelecimentos educativos (rede privada e social). O paradigma de referência da investigação foi o da abordagem qualitativa, com características de estudo de caso múltiplo, destacando-se a importância da construção de um conhecimento compreensivo e interpretativo dos fenómenos sociais e educativos produzidos em relação com os atores concretos nos contextos onde desenvolvem a sua ação. Os procedimentos metodológicos conjugaram observações, pesquisa documental, entrevistas semiestruturadas individuais e coletiva (focus group). A análise interpretativa revela que estas profissionais ao longo das suas trajetórias profissionais têm vindo a ser confrontadas com a construção de uma profissão que guarda o traço de ambiguidade entre a função materna e a função docente, pelo que desejam para si novas identidades, mais justas, mais positivas e mais reconhecidas. Encetaram um novo caminho, encontrando-se num processo de (re)construção das identidades profissionais, em que é possível visualizar movimentos de pertença e de superação de identidades herdadas e a procura de novas formas de ser, sentir e agir, alicerçadas em dinâmicas de trabalho colaborativas. Deste processo, emergem vários traços identitários, contudo, na presente comunicação situamo-nos somente na imagem social e profissional desvalorizada, na construção permanente de uma pedagogia articulada entre equipas educativas e famílias e no desenvolvimento profissional em contexto.

Palavras-chave: Creche; Educadoras de Infância; Práticas Pedagógicas; Identidades Profissionais


INTRODUÇÃO

    O presente texto apresenta parte dos resultados de uma investigação mais alargada, desenvolvida no âmbito de um Doutoramento em Educação, que teve como finalidade problematizar a construção das identidades profissionais de seis educadoras de infância a intervir em diferentes contextos de creche. Procuramos desocultar os sentidos e significados que atribuem à intervenção educativa, de forma a compreender como vivem e pensam a profissão e como encaram o seu profissionalismo docente e a sua identidade profissional. Para o efeito, demos a palavra às seis educadoras, a fim de poderem testemunharem os seus percursos pessoais e profissionais e explicitar os seus modos de pensar, sentir, e fazer. Observamos, ainda, as suas práticas pedagógicas e consultamos alguma documentação pedagógica, para podermos confrontar o dito, o escrito e o feito.

    Confrontamo-nos com profissionais cuja profissionalidade não é reconhecida, continua ligada a uma prática feminina e materna, admitindo-se que o seu saber-fazer é incorporado a partir das suas experiências vividas como mulheres e como mães. Para tal, acresce o facto de o atendimento das crianças em creche continuar a ser entendido como uma resposta social pensada para apoiar as famílias que não podem assegurar, a tempo inteiro, a educação dos seus filhos implicando, assim, que este grupo profissional seja confrontado com diferentes perspetivas educacionais por parte das famílias, comunidade, outros profissionais, entidades patronais e organismos de tutela.
Entendemos que trazendo as suas vozes para o domínio público e problematizando as suas práticas pedagógicas, estaremos a contribuir para ampliar o conhecimento sobre os processos de construção das suas identidades profissionais, para a visibilidade e valorização da sua profissionalidade docente e, por fim, para a melhoria da qualidade do atendimento oferecido às crianças dos zero aos três anos em contexto coletivo, no sentido de ir para além da dicotomia cuidar/educar e caminhar em direção a uma abordagem integrada e abrangente de educação de infância.


IDENTIDADES PROFISSIONAIS NA EDUCAÇÃO DE INFÂNCIA

    No sentido de compreender o tema das identidades profissionais dos educadores de infância, ancoramo-nos no conceito de identidades profissionais dos docentes, procurando salvaguardar a especificidade e singularidade deste grupo profissional.
    As interações, negociações e reestruturações que ocorrem por meio da diferenciação e assimilação do outro e de si mesmo assumem grande relevância nas identidades profissionais dos docentes.
    Salienta-se, assim, a ideia de que o processo de construção das identidades consiste num processo de construção social onde se cruza o grupo profissional de pertença com o meio onde está inserido (comunidades, contextos de trabalho, crianças, famílias, contextos de formação, grupos de pares, entre outros).
    Nóvoa (2000) ao referir-se ao processo de construção das identidades docentes, define-o como um processo ambivalente, como um lugar de lutas e de conflitos entre as vertentes pessoal e profissional. Cada sujeito tem de desenvolver formas singulares de profissionalidade, a fim de construir a sua identidade, pois esta “não é um dado adquirido, não é uma propriedade, não é um produto” (p.15).
    O autor refere que essa construção se realiza através de um triplo processo: adesão a princípios, valores e a projetos comuns do seu grupo profissional, mobilizando as capacidades das crianças para o desenvolvimento da sua prática; ação, elegendo formas próprias de agir sustentada em saberes específicos, que o façam sentir-se bem na sua função; autoconsciência, refletindo, através de um processo contínuo sobre a sua própria ação profissional, consistindo na base de todas as decisões (Nóvoa, 2000).
    Assim, os docentes constituem identificações e fazem aprendizagens ao apropriarem-se dos conhecimentos construídos socialmente, pois as suas ações e comportamentos transformam-se ao longo das suas vidas e vão refletindo os diversos contextos e grupos por onde vão passando, ou seja pelos seus mundos vividos (Dubar, 1997b), traduzindo-se em novos formatos identitários.
    O processo de construção das identidades profissionais dos educadores de infância está diretamente relacionado com a forma como a sociedade tem vindo a conceber e praticar o atendimento das crianças pequenas em espaços coletivos. É ainda resultado das transformações do papel da mulher na sociedade, das relações entre Estado e família, das conceções de criança e infância(s) e das políticas educativas.

    Assim, pensar a identidade profissional em educação de infância, significa pensar a sua atividade profissional enquadrada por estas questões, relacionando-as ainda com a produção do conhecimento que se vem estruturando ao longo dos tempos.
    A natureza e qualidade das interações estabelecidas com o grupo, os contextos de intervenção, a relação que estabelece com o grupo de pares e os saberes que cada educadora vai (re)construindo ao longo do seu percurso de vida pessoal e profissional, definem o tipo de construção identitária profissional - reprodutor ou transformador.
    O grupo profissional dos educadores de infância, é um grupo com uma história recente, pelo que as suas referências se encontram em processo de (re)construção, mas mantém-se a centralidade nuclear para o desenvolvimento da profissão, ou seja, a relação pedagógica com as crianças e famílias (Sarmento, 2009).
    Sinaliza-se, a este respeito, o grupo de educadores a intervir em creche que continua a sentir insatisfação com o desprestígio profissional, desejam o reconhecimento do seu trabalho, a valorização da sua imagem social. Não se regista um paralelismo entre a imagem interna (a imagem de si) e a imagem externa (a imagem da sociedade). A forma pela qual a sociedade vê a profissão ainda é, muitas vezes, identificada com uma profissão que carrega as marcas da história coletiva das mulheres, repercutindo-se na evidência de um vazio na identidade profissional desses educadores, pois o “reconhecimento é o produto de interações positivas entre o indivíduo visando a sua identidade real e o outro significativo que lhe confere a sua identidade virtual; o não reconhecimento resulta, pelo contrário, de interações conflituais, de desacordos entre identidades virtuais e reais”
(Dubar, 1997b, p. 135)

    Ao analisar a profissionalidade destes educadores e compreender os seus processos identitários, partimos da perspetiva apontada por Dubar (1997a), no que diz respeito à dimensão pessoal e profissional na construção de identidades no interior das instituições. Compreendemos, assim, as identidades sociais e profissionais como um processo no qual ocorrem sucessivas identificações, que se constroem e se articulam durante as trajetórias percorridas pelos sujeitos. Ao longo da sua carreira profissional, a própria perspetiva profissional vai mudando, vai sofrendo possíveis reajustamentos e reconversões em função das transações sociais de cada um.
    É precisamente nesse sentido, que o autor referido alude que a identidade nunca é dada, ela é sempre construída ou (re)construída, em função das “construções sociais que implicam a interação entre as trajetórias individuais, sistemas de trabalho e sistemas de formação” (Dubar, 1997b, p. 235). Desta forma, o docente, num maior ou menor grau, no início ou no final de carreira pode passar por um processo de construção ou (re)construção da sua identidade profissional, independentemente do tempo ou do contexto onde ocorra.
    A formação e o desenvolvimento profissional assumem um papel relevante para o desenvolvimento de identidades consistentes, numa lógica da necessidade da persistência e da transformação, no sentido de se efetivar e dar a conhecer práticas pedagógicas atuais e inovadoras.
    Contudo, não nos poderemos esquecer que estamos na presença de um processo complexo, interativo, diversificado, gradual, que está associado ao sentimento e à consciência de pertencer a um grupo, a um lugar em que cada um se insere no mundo e na profissão, pelo que necessita de tempo para acomodar toda a inovação e incorporar todas as mudanças (Nóvoa, 2000).
    Entendendo, assim, que a identidade é relacional e que se constrói nas interações e nos mais variados contextos instituições (Dubar, 2006), onde são feitas “trocas, aprendizagens, relações diversas da pessoa com e nos seus vários espaços de vida profissional, comunitário e familiar” (Sarmento, 2009, p. 48), procuramos conhecer as trajetórias pessoais e profissionais, os contextos educativos de intervenção e as formas de construção e expressão de diferentes maneiras de ser e estar na profissão das seis educadoras.


A INVESTIGAÇÃO QUALITATIVA COMO ESTRUTURANTE DO PERCURSO METODOLÓGICO

    Ao procurarmos delinear um caminho que nos permitisse penetrar na problemática das identidades profissionais das seis educadoras de infância a intervir em contexto de creche, optamos por uma abordagem metodológica qualitativa de natureza interpretativa (Bogdan e Biklen, 1994), operacionalizada num estudo de caso múltiplo, uma vez que a nossa preocupação centrou-se na descoberta de relações e conceitos e não na verificação ou comprovação de hipóteses previamente estabelecidas (Yin, 2009; Stake, 2012).
    A investigação incidiu em três estabelecimentos educativos, com diferentes tutelas (social e privada) do distrito de Setúbal, em Portugal e participaram seis educadoras de infância, duas de cada contexto. A constituição do grupo de participantes não foi aleatória, decorreu de um estudo exploratório, que se consubstanciou na primeira fase da investigação e permitiu ambientarmo-nos com a problemática que nos propusemos investigar e contribuir para o percurso investigativo do estudo principal.
    A abordagem qualitativa possibilitou-nos aceder às realidades profissionais múltiplas e socialmente construídas das seis educadoras de infância e compreender e interpretar a singularidade e complexidade dos seus modos de fazer, sentir e ser.
    Os procedimentos de recolha de informação conjugaram observações, pesquisa documental, entrevistas semiestruturadas individuais (E1) e coletiva (focus group) (E2), a fim de obtermos um leque de respostas o mais representativo possível, de forma a permitir cumprir os objetivos do estudo. Para procedermos à análise da informação recorremos à técnica de análise de conteúdo e confrontamos o quadro teórico de referência com o material empírico. O processo de organização da análise realizou-se em três etapas distintas: a pré- análise; a exploração do material e o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação da informação (Bardin, 2011).
    Sublinha-se que procuramos reunir todas as condições favoráveis à condução da investigação de uma forma “metodologicamente competente e eticamente responsável” (Lima, J. 2006, p. 155), pelo que asseguramos a privacidade de todos os implicados no estudo, nomeadamente o consentimento informado e o anonimato (Bogdan & Biklen, 1994).


APRESENTAÇÃO, ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DE ALGUNS RESULTADOS

    Ao procurarmos compreender os processos de construção das identidades profissionais das seis educadoras de infância, emergiram vários traços identitários, não obstante, no presente texto, situamo-nos somente na imagem social e profissional desvalorizada, na construção permanente de uma pedagogia articulada entre equipas educativas e famílias e no desenvolvimento profissional em contexto.

Das identidades herdadas às identidades visadas: “Sinto que a minha autoestima vem aumentando…”
    Como referido anteriormente, a constituição da profissão de educadora de infância é um processo histórico recente e, ao longo da sua edificação, sobressaíram algumas características que se refletem, ainda hoje, no quotidiano da intervenção, nomeadamente o assistencialismo, a maternidade, o trabalho doméstico feminino e a puericultura.
   Tais características têm contribuído para que a identidade destas profissionais, ainda hoje, seja pouco valorizada socialmente, uma vez que se tem perpetuado, ao longo dos tempos, a compreensão de que para exercer a profissão de educadora de infância 

 

basta gostar de crianças, ser uma pessoa paciente, educada… e muito carinhosa. Também terá que ter alguma habilidadezinha com as mãos para fazer coisas bonitas… ter vocação para tomar conta de meninos, saber mudar a fralda, limpar bem os rabinhos, dar de comer, cantar umas cançõezinhas… (E1, Maria).

 

Estas seis profissionais herdaram uma identidade com a qual já não se identificam, mas com a qual são confrontadas no exercício das suas funções e que muito tem contribuído para a desvalorização da sua intervenção. Não obstante, não baixam os braços, “lutam” permanentemente, no sentido de conseguirem “mudar mentalidades e fazer com que a imagem social seja mais favorável e que passem a identificar a Educadora como uma profissional que tem funções docentes e não maternas” (E1, Patrícia).

 

A Educadora Alice reforça que a valorização da intervenção tem de, primeiramente, partir das educadoras, “têm que acreditar no valor do seu trabalho, que estão a contribuir verdadeiramente para as aprendizagens das crianças, que têm um papel importante no seu desenvolvimento” (E2, Alice).

    Constata-se, assim, que um dos referentes identitários destas profissionais é a desvalorização da identidade profissional, decorrente da perspetiva de que a centralidade da ação da educadora se situa na dimensão dos cuidados, considerada como prática materna, com características de âmbito fortemente doméstico, pelo que acarreta à docência na educação de infância um status de não profissionalização e desprestígio profissional.

    É certo que a intervenção destas profissionais se desenvolve através das interações entre adultos e crianças o que, inevitavelmente, exige uma relação corpo a corpo, uma vez que estão na presença de crianças pequenas e bebés, onde o contacto físico é permanente, nomeadamente nos momentos do acolhimento, da higiene, da alimentação, do sono. Daí prevalecer a dimensão materna e, muitas vezes, a mobilização do conhecimento tácito, do senso comum. É assim atribuída à profissionalidade um sentido de zelo, cuidado e proteção, que acabam por identificar essas ações profissionais como pouco educativas, atendendo que são muito semelhantes às ações que ocorrem no contexto familiar.
    As educadoras sentem e sabem que quanto menor é a idade das crianças, menor é o seu valor e status profissional, traduzindo-se nos seguintes aspetos: contratação de educadoras com pouco tempo de serviço para pagarem salários mais baixos; colocação de educadoras menos qualificadas, sem preocupação em promover novas formas de organizar a intervenção em creche; não reconhecimento do tempo de serviço docente; desadequação dos horários de trabalho com as exigências profissionais.
    Confrontadas com a construção de uma profissão que guarda o traço de ambiguidade entre a função materna e a função docente, desejam para si novas identidades, pelo que encetam um novo caminho, tendo por base as identidades herdadas, procuram novas formas de ser, sentir e agir, procuram novas identidades - identidades visadas ou identidades de futuro (Dubar, 1997b).
    Não esquecem o passado da sua profissão, pois é partindo do que herdaram que vão em direção a novas formas de intervir pedagogicamente, uma vez que uma “profissão desinteressada de si, esquecida do seu passado, é uma profissão incapaz de assumir o seu compromisso para o futuro. Incapaz, portanto de responder aos apelos do presente” (Baptista, 2005, p. 131).
    Neste sentido, procuram dar intencionalidade aos cuidados, para que se estabeleça uma relação equilibrada e de continuidade entre a perspetiva pedagógica e a perspetiva mais maternal.
    Assiste-se, assim, à compreensão da docência como um processo constituído por interações humanas, pelo que as educadoras procuram construir uma pedagogia ancorada numa intervenção educativa que busca desenvolver um atendimento personalizado e individualizado para as crianças revestido de afetos. Atuam como facilitadoras das trocas sociais (adultos e  crianças), inovam e organizam os espaços e os materiais, propõem atividades, acolhem os pedidos, respeitam as preferências e interagem com as famílias e os pares profissionais.

Desenvolvimento profissional em contexto: “Aprender com o Outro…”
    A existência de uma colaboração e partilha de saberes, experiências, problemas e/ou interesses comuns no seio da equipa pedagógica, surge como um referente identitário marcante destas educadoras.
    A profissão do educador de infância exige uma competência polivalente e conhecimentos específicos, de forma a mobilizar, permanentemente, o educare (Caldwell, 1995) na sua prática pedagógica, focando a aprendizagem e o desenvolvimento global da criança pequena. É um constructo do coletivo e não pode ser exercida isoladamente na instituição educativa, o que significa dizer que há necessidade da mobilização do esforço e empenho de todos. 
    As seis educadoras fazem referência ao processo de reflexão partilhada como forma de irem além do que seriam capazes individualmente, contribuindo para a ampliação de sentidos e significados da prática pedagógica, e, por conseguinte, para uma melhor performance da equipa, pela construção de um conhecimento contextualizado e pela aprendizagem coletiva.
    Verifica-se, assim, que a construção de significados partilhados no confronto de experiências e reflexões em equipa ganha sentido pessoal para cada sujeito do grupo, pois eles são necessários para resolver problemas localizados no coletivo.
 A interação cooperada experienciada pelas educadoras proporcionou ajudas que possibilitaram a aprendizagem e o
desenvolvimento profissional, revelando um movimento de formação profissional que se aproxima de uma perspetiva crítica, entendendo-se os educadores como intelectuais e parte de um coletivo social e profissional, “vislumbrando uma perspetiva dos professores como profissionais produtores de saber e de saber-fazer” (Nóvoa, 2000, p. 16).
    Constatamos, assim, que estas educadoras reconhecem que para exercer a sua profissionalidade com qualidade têm necessidade de uma construção relacional, dialógica, colaborativa entre todas que dela participam e, por isso, é constituída por interações sociais diárias, pois como refere Maria,

somos confrontadas diariamente com situações muito difíceis, quer com as crianças, com as famílias, com a coordenação, a direção… e temos mesmo que contar com a colaboração da equipa que está à nossa volta e assim tem sido, com muito diálogo, muita partilha… Estive ausente durante 10 meses, estive doente, estava desgastada … no
meu regresso tenho vindo a apoiar-me na equipa, nos seus conhecimentos, nas suas experiências e isso tem contribuído para me sentir mais confiante, a partilha tem contribuído para a minha tranquilidade e crescimento profissional (E2, Maria).

    A este respeito consideramos que é pertinente mobilizar as palavras de Nóvoa (1999), quando nos alerta para a necessidade de compreendermos o “papel da docência na vida e o papel da vida na docência” (p. 78) para conseguirmos enfrentar, com maior, tranquilidade e qualidade, a “complexidade, singularidade e incerteza” (Canário, 1997, p. 12) do papel docente, essencialmente, com crianças pequenas.
    Júlia Oliveira-Formosinho (2002), sublinha que a partilha de saberes e experiências entre profissionais nos contextos de intervenção da educação de infância se constituem em fatores importantes na construção de alicerces de sustentação da profissão. Foi precisamente o que a educadora Tina reforçou na sua entrevista, mencionando que todo o seu

[…] crescimento enquanto educadora foi feito numa base de trabalho em equipa, com muito diálogo, muitos momentos informais de troca com toda as pessoas, com as colegas, com as crianças com as família […] para que isso aconteça, tem que haver um tempo para que se estabeleça uma relação de confiança, para partilhar e tirarmos partido
de tudo e melhorarmos a intervenção (E2, Tina)

    Estas profissionais estão inseridas num sistema ecológico de interações (Vasconcelos, 2014), pelo que a sua profissionalidade se fundamenta numa dimensão relacional. Apresentam uma capacidade de aprender no coletivo, sentem-se acompanhadas e estimuladas a co construir o seu saber profissional específico a partir da ecologia humana do quotidiano da sua prática pedagógica,

numa base de afetos, de interação […], estar com os meninos no chão, descobrir as primeiras coisas com eles […] as primeiras palavrinhas, tudo aquilo para mim é uma riqueza, um crescimento, não só como profissional, mas também como pessoa, torna-me mais humana (E1, Tina).

    Pensamos poder afirmar que de todo este processo resulta uma negociação identitária vivida no quotidiano da intervenção, na qual fica explícito que a identidade das pessoas não se constrói sem elas, nem sem os outros que as rodeiam em todos os seus contextos de vida.


(Re)inventar estratégias de interação com as famílias: “Um compromisso diário…”
    Um terceiro traço identitário que se definiu a partir desta investigação consiste na procura permanente, por parte das educadoras, em estabelecer relações de reciprocidade com as famílias, especialmente num contexto onde existe cada vez maior diversidade, o que requer, como afirma a educadora Patrícia: “inovar para envolver, para cativar, como nos diz o Principezinho” (E1, Patrícia).

    Sinalizaram vários fatores que têm vindo a contribuir para essa necessidade, nomeadamente o facto de há vários anos vivermos momentos de profunda crise social e económica, aumentando as exigências às famílias no meio laboral, tornando-se cada vez mais difícil conciliarem o tempo profissional com o tempo familiar, pois como testemunha a educadora Maria

cada vez têm menos tempo útil para estar com os filhos, são cada vez mais vezes os avós ou familiares próximos a trazê-los, estão sempre a dizer que não têm tempo para se envolverem nos projetos da creche. As crianças chegam muito cedo e vão para casa muito tarde. Temos crianças que estão aqui 12 horas e claro, os pais quando vêm cansadíssimos, não têm mesmo tempo para conversar, nem para participar seja no que for (E2, Maria).

    Outro fator sinalizado consiste nas novas configurações familiares, uma realidade que requer a mobilização permanente de estratégias diferentes, no sentido de ativar a comunicação e o envolvimento no quotidiano da prática pedagógica. A este respeito a educadora Maria refere que

[…] é a mãe para um lado, o pai para outro ou as famílias reconstruídas, as segundas famílias, são os teus filhos, são os meus. Os profissionais ficam ali no meio, muitas vezes sem estratégias para conseguir comunicar. Nunca sabemos se estão com o pai, se com a mãe, se com as avós e depois entre eles também não comunicam e, claro que essa situação dificulta-nos o trabalho (E2, Maria).

    As diferenças culturais, linguísticas e religiosas, acentuadas pela intensificação do fluxo migratório, também têm vindo a contribuir

para que, por vezes, se acentuem algumas dificuldades na comunicação, nem sempre somos compreendidas, o que exige algum trabalho extra, na procura de diferentes formas de ação, para os envolver no trabalho que realizamos (E1, Carla).

    Perante tal diversidade, estas educadoras sentem que têm “que fazer um maior investimento para enfrentarem a tarefa cada vez mais difícil de trabalhar com as famílias” (E2, Sara), pelo que tentam ultrapassar as relações instrumentalizadas e procuram trabalhar proativamente, onde o Outro não aparece como ameaça, mas como recurso (Vasconcelos, 2009).
    Acresce o facto de que, quanto mais nova é a criança, especialmente no caso dos bebés, maior é a necessidade de atenção para com as relações entre creche e família, uma vez que “os bebés ainda não falam e para irmos ao encontro das suas necessidades temos que estar sempre em contacto” (E1, Maria). Também, quanto mais nova é a criança, maior a necessidade de “passar a mensagem às famílias de que na creche tudo o que se faz é educativo, que através de todas as atividades estamos a contribuir para o desenvolvimento das crianças” (E1, Alice).
    Nesta perspetiva, torna-se necessário elucidar as famílias sobre a importância da integração de profissionais qualificados, uma vez que muitas famílias “ainda olham para a educadora de creche como uma pessoa que toma conta, que não precisa de muitas qualificações para estar com os bebés, para lhes mudar a fralda, dar de comer” (E1, Tina).
   Para ultrapassar todos os condicionalismos, tentam passar de uma ação para as famílias, para uma ação com as famílias (Freire, 2000), procurando conhecer e dar-se a conhecer, abrindo caminho a possibilidades de partilha, tentando produzir bem estar e convívio, numa relação de proximidade e cooperação.
   Consideramos que o caminho está encetado em direção a uma abordagem sociopedagógica co-construída, onde a dinamização de projetos com as crianças e com as famílias é uma realidade. Regista-se a procura permanente em inovar, reinventar estratégias de atuação, para ser conseguida a participação de todos, numa alternância de diálogos, estabelecendo metas para os avanços e para a qualidade do atendimento.


ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

    Através deste estudo foi possível constatar que as educadoras participantes, apesar de confrontadas com vários constrangimentos relacionados com a desvalorização e o não reconhecimento profissional, encontram-se num processo de (re)construção das identidades profissionais, procuram identidades mais justas, mais positivas e mais reconhecidas. É possível identificar movimentos de pertença e de superação de identidades herdadas, através de novas formas de ser, sentir e agir no quotidiano da intervenção educativa, alicerçadas em dinâmicas de trabalho colaborativas. Procuram, assim transformar as identidades atribuídas em identidades desejadas/de futuro (Dubar, 1997b).
  A construção das suas identidades profissionais pronuncia-se no processo de desenvolvimento profissional, sob uma perspetiva holística. Assenta numa dinâmica permanente de interações entre os múltiplos papéis que assumem na complexidade do quotidiano pedagógico desempenhado nos diferentes contextos, convergindo as inúmeras dimensões das suas vidas pessoais e profissionais. Consiste, assim, num processo contínuo, onde os diferentes domínios (biográfico, profissional, relacional e social) se interconectam.
    A reflexão sobre a ação, em trabalho coletivo, a partir de uma rede de relacionamentos entre profissionais, crianças, famílias e parceiros da comunidade, criando conexões e pontes para novas e diferentes formas de agir, onde subjaz a troca de experiências, saberes, intenções e novas formas de olhar o ato pedagógico, assume um papel vital na aquisição de saberes específicos para agir nos contextos de educação de infância. Estas educadoras revelam ser inventoras (e não reprodutoras) das práticas pedagógicas, inventam e reinventam em busca de inscreverem “os objetivos da coeducação num conceito alargado de cuidado (care) de si, do outro e do mundo” (Tronto, 2009, cit. por Rayna, 2013, p. 6)


REFERÊNCIAS
Baptista, I. (2005). Dar rosto ao futuro: a educação como compromisso ético. Porto: Profedições.
Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo (5ª ed.). Lisboa: Edições 70.
Bogdan, R. e Biklen, S. (1994). Investigação Qualitativa em Educação – uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto Editora.
Bourdieu, P. (2004). As contradições da herança. Tradução. Magali de Castro. In: P. Bourdieu (org.). Escritos de Educação (6ª ed.). Rio de Janeiro: Editora Vozes.
Caldwell, B. (1995). Creche – Bebé, Família e Educação. In: J. Gomes-Pedro (coord.). Bebé XXI, Criança e Família na viragem do século (pp. 470-473). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Canário, R. (1997). A escola: o lugar onde os professores aprendem. Cadernos de Educação de Infância, 52. 11-18.
Correia, I. (2018). Para além da dicotomia educar/cuidar: sentidos e significados da intervenção no contexto de creche (Tese de doutoramento, não publicada). Instituto de Educação, Universidade de Lisboa, Lisboa.
Dubar, C. (1997a). Formação, trabalho e identidades profissionais. In: Rui Canário, (org.). Formação e situações de trabalho (pp. 43-52). Porto: Editora Porto.
Dubar, C. (1997b). A socialização: a construção das identidades sociais e profissionais. Porto: Porto Editora.
Dubar, C. (2006). A crise das identidades: a interpretação de uma mutação. Porto: Edições Afrontamento.
Freire, P. (2000). Pedagogia da Indignação: Cartas Pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Ed. UNESP.
Katz, L. (1984). More Talks with Teachers. ERIC - Clearinghouse om Elementary Childhood Education. Urbana, Illinois.
Nóvoa, A. (1991). O passado e o presente dos professores. In A. Nóvoa (org.), Profissão Professor. Porto: Porto Editora.
Nóvoa, A. (1999). Os professores: em busca de uma autonomia perdida? In A. Nóvoa, Ciências da Educação em Portugal. Porto: Porto Editora.
Nóvoa, A. (2000). Os Professores e a História da sua Vida. In A. Nóvoa (org.), Vidas de professores (pp. 11-31). Coleção Ciências da Educação. Porto: Porto Editora.
Oliveira-Formosinho, J. (2002). O desenvolvimento profissional das educadoras de infância; entre os saberes e os afetos, entre a sala e o mundo. In A. Machado (org.), Encontros e Desencontros em Educação Infantil (pp. 133-168). São Paulo: Cortez.
Rayna, S. (2013). Alianças Educativas – Entre os serviços para a infância e as famílias. Infância na Europa, 24, 6-7.
Sarmento, T. (2009). As identidades profissionais em educação de infância. Locus Soci@l, nº 2, 46 - 64. Disponível em: http://locussocial.cesss-ucp.com.pt/page6/files/artigo-007c-paper-sarmento_ls00232.pdf> .
Stake, R. (2009). A Arte da Investigação com Estudos de Caso (2ª ed.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Vasconcelos, T. (2009). A Educação de Infância no Cruzamento de Fronteiras. Coleção Educação Hoje. Lisboa: Texto Editores, Lda.
Vasconcelos, T. (2014). Tecendo Tempos e Andamentos na Educação de Infância (Última Lição). Coleção Estudos e Reflexões. Média XXI-Publishing Research and Consulting.
Yin, R. (2005). Estudo de caso: planejamento e métodos (3ª ed.). Porto Alegre: Artmed.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Carta aberta a todas as associações, organismos e pessoas individuais que colaboram com a Educação de Infância

As metas de Barcelona para 2030 _ Recomendação do Conselho de 8 de dezembro de 2022 sobre educação e acolhimento na primeira infância

Números-Chave sobre a Educação Pré-Escolar e Cuidados para a Infância na Europa