O QUE REALMENTE IMPORTA NUMA EDUCAÇÃO DE INFÂNCIA DE QUALIDADE? - Ana Teresa Brito

O QUE REALMENTE IMPORTA NUMA EDUCAÇÃO DE INFÂNCIA DE QUALIDADE? 

Ana Teresa Brito
PhD Fundação Brazelton Gomes-Pedro para as Ciências do Bebé

Brito, A. T. (2019). O que realmente importa numa educação de infância de qualidade?, Vasconcelos, Cunha, Folque, Brito e Ascensão, Educação de infância: o que temos e o que queremos, pp. 32-35, EDULOG, Fundação Belmiro de Azevedo, ISBN: 9781795401388


O que realmente importa numa educação de infância de qualidade? 
Para refletir sobre esta, tão relevante, questão, elenquei três desafios, sendo o primeiro colocar(mos) o atual conhecimento científico sobre a criança no centro da nossa compreensão sobre o seu desenvolvimento e aprendizagem.

Já na viragem do milénio, António Damásio afirmava: “Nos últimos anos, tanto a neurociência como as ciências cognitivas abraçaram finalmente a emoção. (…) A emoção bem dirigida parece ser o sistema de apoio sem o qual o edifício da razão não pode funcionar eficazmente.” (2000, pp. 61-62). Poucos anos mais tarde, Sue Gerhardt (2004) traduzia esta afirmação no livro “Why love matters”, partilhando as mais recentes descobertas científicas sobre o cérebro do bebé. Pela sua atualidade, destaco algumas das ideias- -chave que partilha: cada bebé vem com a sua impressão digital genética e com um leque de possibilidades único; o “equipamento de base” contém os rudimentos para a emoção e auto regulação, mas o bebé é um projeto interativo – só se desenvolve na interação com o outro;  o tipo de cérebro que cada bebé desenvolve está profundamente relacionado com as experiências singulares que desenvolve com as pessoas que o rodeiam; um bebé precisa de um adulto responsivo e alerta aos seus estados momento a momento (Gerhardt, 2004). 


É exatamente este adulto – cuidador, educador – que, de forma sensível, sintónica com a criança, vai potenciar as suas mil possibilidades. Como afirma Bruce Perry, “o cuidar humano expressa a nossa capacidade de sermos humanos” (Perry, 2013).

Em educação de infância, e na investigação que sobre a mesma realizamos, também ecoa o que as neurociências enfatizam – entre os múltiplos fatores que fundamentam a qualidade necessária aos contextos, “o componente crítico para a qualidade funda-se na relação entre a criança e o educador/cuidador e na capacidade do adulto ser responsivo à criança.” (National Research Council, 2001, p. 21). Complementarmente, Bronfenbrenner (2005) sublinha a importância dos cuidadores primários terem, pelo menos, um outro cuidador adulto que encoraje e expresse admiração e afeto pela pessoa que cuida e se envolve numa atividade conjunta com a criança. Esta cascata de cuidados deve assim ser vista numa perspetiva sistémica e ecológica que hoje se traduz numa complexa dinâmica de redes que se apoiam mutuamente. 

Chegamos, assim, ao segundo desafio – conhecer(mos) a realidade de crianças muito pequenas e suas famílias em Portugal. Sabendo que a pobreza infantil é superior à média de pobreza da população portuguesa (Folque et al., 2016; INE, 2017), é indispensável promover uma política centrada na infância. A Recomendação nº 3/2011 do Conselho Nacional de Educação sobre a Educação dos 0 aos 3 anos mantém-se atual, destacando a necessidade (e urgência!) de: conceber a educação dos 0 aos 3 anos como um direito e não apenas como uma necessidade social; assumir que a responsabilização primeira pertence às famílias; reconfigurar o papel do Estado (a educação deve iniciar-se aos 0 anos); investir na qualidade dos serviços e elaborar linhas pedagógicas; elevar o nível de qualificação dos profissionais e as condições de trabalho; fomentar o desenvolvimento da investigação (CNE, 2011). Emergem e sustentam-se, nesta esteira, recomendações fundamentais em Educação de Infância: promover a qualidade dos contextos educativos; potenciar o envolvimento e participação das famílias; fomentar uma intervenção preventiva e inclusiva; irradiar uma cultura da infância.

Como docente, formadora de profissionais de diversas áreas, diretamente envolvidos com crianças dos 0 aos 3 anos e suas famílias, enfrento, então, o desafio de repensar e fortalecer a natureza da formação dos profissionais de Educação para trabalhar com crianças muito pequenas, suas famílias, em equipa, na comunidade. Neste contexto, surge o terceiro desafio – ser(mos) capazes de traduzir o(s) conhecimento(s) em ação concreta face à singularidade de cada contexto. Como sublinha Zimmerman (2010), “Apesar de toda a evidência científica, a maioria dos educadores ainda se foca no desenvolvimento individual, sem o benefício de uma mudança de paradigma que coloca as relações no centro da consciência e intervenção dos profissionais” (Zimmerman, 2010, p. 279).
No caminho para potenciar a qualidade para a formação, fundada na evidência e nas boas práticas, chegamos a Berry Brazelton (1908-2018) e ao seu legado. Pedersen e Shonkoff (2010) afirmam-no claramente:

A base do conhecimento atual, que nos ajuda a compreender o mundo da infância, sublinha a importância central das relações, a fundamental influência das interações adulto-criança, e o papel crucial que as crianças desempenham no seu próprio desenvolvimento. (…) Este enquadramento está coberto pelas impressões digitais de Brazelton. (p. 340)


Brazelton deu-nos novas lentes, uma nova cartografia para observarmos, compreendermos e valorizarmos o comportamento do recém-nascido; as diferenças individuais; as interações entre cuidadores e bebés; os cuidados antecipatórios; os cuidados centrados na família e a colaboração transdisciplinar (Nugent, Petrauskas, & Brazelton, 2009). O modelo que criou – Modelo Touchpoints – contribui para um avanço teórico na forma como encaramos os períodos de desorganização inerentes ao desenvolvimento humano. O seu enfoque relacional vê, nestes períodos de desorganização, uma extraordinária oportunidade para os profissionais se unirem aos pais, numa aliança de suporte. Hoje temos a evidência de que quando os pais se sentem apoiados estão mais disponíveis para entender e valorizar as etapas de desenvolvimento dos seus filhos e para estabelecer relações de maior qualidade com os profissionais (Sparrow, 2010).

A educação de infância é o domínio de intervenção mais próximo – continuadamente, quotidianamente – das crianças e suas famílias. É missão da Fundação Brazelton Gomes-Pedro para as Ciências do Bebé e da Família (FBGP) “fomentar, desenvolver e difundir um novo paradigma de intervenção inspirado num modelo relacional, no pressuposto de que favorecer o vínculo do bebé à sua família tem repercussões significativas ao longo do desenvolvimento” (FBGP, 2018). No compromisso maior com esta missão, procuramos também iluminar a visão do Brazelton Touchpoints Center (2018), que, inteiramente, partilhamos: contribuir para que todas as crianças cresçam e se tornem adultos capazes de enfrentar a adversidade; fortalecer as suas comunidades; participar construtivamente na vida cívica; administrar os recursos do nosso planeta e cuidar da próxima geração, preparando-a para fazer o mesmo.


REFERÊNCIAS: Brazelton Touchpoints Center (2018). Vision, Mission, Values. Disponível em: https://www.brazeltontouchpoints.org/about/vision | Bronfenbrenner, U.  (2005). Preparar um mundo para a criança do século XXI. In, Gomes-Pedro, Nugent, Young & Brazelton. (2010). A criança e a família no século XXI. Lisboa: Dinalivro. | Conselho Nacional de Educação (2011). Recomendação n.2 3/2011. A educação dos O aos 3 anos. Lisboa: CNE. | Damásio, A. (2000). O sentimento de si. O corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência. MemMartins: Publicações Europa-América. | Folque, M. A., Tomás, C., Vilarinho, E., Santos, L., Fernandes-Homem, L., & Sarmento, M. (2016). Pensar a educação de Infância e os seus contextos. In M. Silva, B. Cabrito, G. L. Fernandes, M. C. Lopes, M. E. Ribeiro, & M. R. Carneiro (Coord.), Pensar a Educação: temas sectoriais (pp. 9-46). Lisboa: Educa. ISBN 978989-8272-24-9 | Fundação Brazelton Gomes-Pedro para as Ciências do Bebé e da Família (2018). Missão. Disponível em: http://www.fundacaobgp.com/pt/missao | Gerhardt, S. (2004). Why Love Matters: how affection shapes a baby’s brain. New York: Brunner Routledge. | Instituto Nacional de Estatísticas (2018). Rendimento e Condições de Vida. Disponível em: https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_destaques&DESTAQUESdest_ boui=281441156&DESTAQUESmodo=2 | National Research Council (2001). Eager to learn, Educating our Preschoolers. [Committee on Early Childhood Pedagogy, Comission on Behavioral an Social Scineces and Education] B.T. Bowman, M. S. Donovan., & M.S. Burns (Eds.). (2000).  Washington, DC: National Academy Press. | Nugent, J.K., Petrauskas, B.J. & Brazelton, T.B. (2009). The Newborn as a Person. Enabling Healthy Infant Development Worldwide. New Jersey: John Wiley &Sons. | Pedersen, D. & Shonkoff, J.P. (2010). Translating the Science of Early Childhood Development into Policy and Practice. In, Lester, B. M. & Sparrow, J. D. (2010). Nurturing Children and Families. Building on the legacy of T. Berry Brazelton. New York: Wiley-Blackwell. | Perry, B.D., (Chicago Idea’s Week). (2013) Departures: The Nature of Humankind | [Video webcast] Disponível em: https://www.chicagoideas.com/videos/462 | Sparrow, J. (2010). Aligning Systems of Care with the Relational Imperative of Development. Building Community through Collaborative Consultation. In, Lester, B. M. & Sparrow, J. D. (2010). Nurturing Children and Families. Building on the legacy of T. Berry Brazelton. New York: Wiley-Blackwell. UNICEF (2014). As Crianças e a Crise em Portugal. Vozes de Crianças, Políticas Públicas e Indicadores Sociais, 2013.Lisboa: Comité Português para a UNICEF. | Zimmerman, L. (2010). Developing the infant mental health workforce.  In, Lester, B. M. & Sparrow, J. D. (2010). Nurturing Children and Families. Building on the legacy of T. Berry Brazelton. New York: Wiley-Blackwell. 





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